Acorda de manhã, um pouco antes das 8:00, para ter tempo de tomar banho, vestir, comer e fazer o caminho até ao emprego, cujo horário de oito horas se inicia às 9:30.
Até este dia, houve todo um percurso semelhante a tantos outros, percorrido por este Homo Sapiens Sapiens, que acordou novamente algo aborrecido e se injetou com "tem de ser" para não desesperar mais que o necessário. Concordou, sem consciência disso, com tudo o que já antes os seus antepassados concordaram e, continua a concordar com aquilo que sabe através dos folhetins redigidos por outros como ele. Para se manter seguro, isto é, para que não o matem ao virar da esquina, este Sapiens concordou com toda uma panóplia de regras, umas com letra grande, outras com letra pequena. Na verdade, não foi ele mas alguém antes dele. Porque este Sapiens já não tem outra opção, agora.
Tem um número. Em bom rigor, vários números. Um para que se saiba que nome tem o Sapiens, quanto mede, onde vive e com quem. Outro para que se saiba quanto ganha, como e porquê. Mais um número para garantir que caso necessite de apoio, por não estar a ganhar nada, o tenha. Mas também para dar uma contribuição não voluntária a outros Sapiens em apuros. Há também um número para este Ser inteligente poder ser assistido em caso de doença, mas também para dar as suas doenças a conhecer. Saltando alguns números na lista, há também um número para comunicar com outros membros da sua comunidade, que também pode servir para dar conhecimento da sua localização exata e deixar registado aquilo que diz e escreve aos seus semelhantes.
Este pertencente ao Reino da Animalia, tem uma longa lista de regras para cumprir, algumas das quais nunca irá ter conhecimento. Fá-lo para que haja uma certa ordem, uma concordância, uma organização que lhe confira o sentimento de estabilidade e, até uma determinada idade, esperança. Acha ele pelo menos. Na realidade, fá-lo para poder coexistir com os outros sem sentir ameaçado. É que por muito pacífico que esta criatura possa parecer, é a mais perigosa do planeta Terra. Para si própria e para todos os outros seres vivos que a rodeiam. Precisa de se domesticar a si própria para sobreviver, por isso necessita de organização e regras. Muitas regras.
Deste modo, o nosso Homo Sapiens Sapiens que hoje se levantou, cede com agrado parte da sua liberdade, em troca de segurança e alguma ilusão de liberdade total. Ele diz orgulhosamente que pode fazer tudo o que quiser. Desde que não faça o que nas regras se diz que é proibido. Pode ser o que quiser e escrever a sua própria história. Desde que amealhe o dinheiro suficiente e não se esqueça de fazer a sua generosa contribuição mensal para, a entidade à qual deve respeito e obediência, com a qual concordou ao nascer, o Estado.
Agora, até consegue ir a todo o lado por vários caminhos disponíveis e criados pela entidade, desde que ceda generosamente a informação de quando, como e porque é que vai onde quer que vá.
Tudo o que tem está registado, catalogado e numerado algures, não sabe onde, mas é o que lhe permite saber o que tem e pode ter.
Paralelamente à concordância com o Estado, este Sapiens Sapiens, concorda em acréscimo, diariamente, com a cedência de informações do seu dia a dia entediante a outros Seres, que criaram esquemas tecnologicamente modernos e que trouxeram uma melhoria para a sua qualidade de vida, acha ele. Através destes mecanismos, ele nunca está sozinho. Todos sabem que este é um animal de socialização, só ainda não sabiam que era socialização permanente. Agora sabem, gostam e cedem com agrado uma parte da sua liberdade para a manter.
Ao final das oito horas do horário de trabalho, oito horas que este conjunto de células basculante e ruidoso não terá nunca mais, seguirá para uma caverna com milhares de anos de aperfeiçoamento, e juntar-se-á a outros seres que consigo vivem, sentados à volta da fogueira sem chama onde poderá ver quem vive, cedendo mais um pouco do seu tempo, a que chama de "tempo livre".
Nesse período mínimo de rotação da Terra, ficará mais uma vez registado, sabe-se lá onde e por quem, onde está, o que está a fazer, com quem, quanto dinheiro perdeu ou ganhou naquele dia e como o irá gastar. O ciclo repetir-se-à, com algumas oscilações e poucos desvios. Com uma indiferença à sua possibilidade consciente de sentir, em prol da diferença do que faz com as suas mãos. Amanhã será novamente livre doando o seu tempo, pagando juros através da sua infelicidade, e movendo-se na esperança de ter alguns anos em que não precisará de se preocupar com a hora de acordar. Nessa altura, os seus melhores anos já foram, e ficará a lamentar cada dia que vive através da ruína do seu organismo.
Pagou para ser livre, para concordar, para se restringir, para se controlar, para se dizer livre por ser poder sentir membro da sua comunidade.
Rotineiro, aborrecido, atraído pela destruição e pela negligência, eis o Homo Sapiens Sapiens, a criatura que não gosta de viver.